Estávamos saboreando as delícias japonesas quando o idoso sentado num banco próximo a nós começa a tocar shakuhachi, uma espécie de flauta japonesa, feita de bambu. Tivemos um som exclusivo para nós enquanto as pétalas caiam sobre nossos cabelos e roupas. Nós, Gracete, Elen e eu, nos sentíamos premiadas nessa tarde.
Eis que, entre um papo e outro entre nós, e trocando sorrisos ocasionais com o senhor muito bem vestido, com boné, bicicleta, walkman e maleta para as flautas, eu o vejo passando o instrumento em sua face. Pensei comigo: será que a oleosidade da pele é boa para a flauta de bambu?
Bem, quando a Gracete, clara dos olhos azuis, sentou-se para tirar uma foto ele perguntou se ela é estrangeira. Respondendo que é burajirujin ele estendeu a pergunta a nós - Elen e eu que temos cara de japa. Aí ele disse que tem 97 anos. Nós 3 ficamos boquiabertas!!!! Ou melhor, sem expressão como a Barbie na caixa.
A veia jornalística logo saltou e perguntei: qual é o segredo para a sua longevidade? E a resposta foi uma aula, com humildade, alegria e sabedoria! "Ter alegria e comer coisas gostosas", iniciou o senhor. Queríamos saber mais. A Gracete tratou de se ajeitar no banco, enquanto Elen e eu nos sentamos na areia para ouvi-lo. E, leia, por favor, por que tenho certeza que você vai adorar as lições que essa pessoa encantadora de 97 anos nos passou. Vou escrever na primeira pessoa como se ele estivesse narrando.
- Comer coisas gostosas significa preparar os alimentos com amor. Minha esposa adoeceu há 20 anos. Até então nunca me preocupei com as refeições por que ela preparava tudo. Mas, comecei a assistir aos programas de culinária na TV, anotava tudo e preparava. Com o tempo, comecei a fazer arranjos próprios e percebi que o sabor melhorava. Fui fazendo até chegar num ponto em que, modéstia à parte, não perco pra nenhum chef. Hoje posso dizer que sou um cozinheiro da faixa dos 90 preparando coisas saborosas. Preparo todas as minhas refeições mesmo depois da separação (se refere à morte) da minha esposa.
- Outro segredo é o uso da toalha. Mas não a de algodão e sim a de linho. Pegue a tolha e dê um nó no meio dela. Esfregue bem as costas, depois o corpo todo. Pele limpa é sinal de saúde. O ato de esfregar faz com que a circulação melhore e o sangue corre alegre por todo o corpo. Ele adora isso!
- Estudar. Sim, estudar. Estudo tudo. Estudo culinária, estudo música. Sou autodidata. Comecei a tocar shakuhachi há 40 anos. Sabe, o karaokê é algo novo, de 40 ou 50 anos. Via uma cantora linda e logo pegava a flauta para tocar. Toco todos os dias, com ouvido e intuição. Eu deixo a minha sensibilidade falar mais alto. Hoje tiro qualquer música enquanto a ouço pela primeira vez. Não preciso de partitura e meu desafio é encontrar alguém que tire uma música de pronto como eu faço. Como minhas pernas andam enfraquecidas pego a bicicleta, que é um amorzinho e ela me leva para todos os parques da cidade. E toco, toco muito. Assim, mantenho meus ouvidos em ordem e minha intuição aflorada!
- Aqui, faço um aparte, pois fiquei curiosa do ato de esfregar a flauta na pele do rosto. Eis que ele diz: Não há óleo que substitua a oleosidade natural da pele. Minhas flautas (tem 8) adoram! Elas são meus amores!
- Estudar. Estudar o que puder todos os dias.
Que encanto né!
Assim, a nossa conversa foi se encerrando por que precisávamos ir embora, com dor no coração, pois a vontade era de ficar horas ouvindo tanta sabedoria, humildade e alegria nessa encantadora pessoa quase centenária. E ele cuida de suas coisas todas: bem vestido, bem arrumado, asseado e culto. Respondeu às nossas últimas perguntas. Ele trabalhou com comércio exterior e chegou a morar em Shanghai, vivenciou as guerras, perdeu uma filha e há dez sua esposa querida, mas jamais a ternura, a dignidade, a vontade de estudar, a disciplina, o amor pela vida, o sorriso e a humildade!
Não dá para deixar de registrar aqui que ficamos todas impressionadas com a sua lucidez, o uso da linguagem atual (isso significa que lê muito!) e do amor infinito que traz em seu coração!
Foi um encontro casual, simples, doce, terno mas marcante! Que lição de vida maravilhosa ele nos passou. Quem nos dera ter a vitalidade que ele tem! Quem nos dera ter a sua disciplina, a sua sede do saber e a sua benevolência em compartilhar isso! Será que a essa longevidade tem a ver com a felicidade dele? Felicidade é um estado e não uma condição - acabei de crer.
Sou grata! Somos gratas pelo dia e pelo encontro abençoado que tivemos!